sexta-feira, 14 de junho de 2013

Pausa

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando: _ Vais sair de novo, Samuel? Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura. _Todos os domingos tu sais cedo _ observou a mulher com azedume na voz. Temos muito trabalho no escritório _ disse o marido, secamente. Ela olhou os sanduíches: Por que não vens almoçar? _Já te disse: muito trabalho. Não dá tempo. Levo um lanche. A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu: _Volto de noite. As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas. Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé: _Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente... _Estou com pressa, seu Raul _ atalhou Samuel. _Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. _ Estendeu a chave. Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade: _Aqui , meu bem! _ uma gritou, e riu : um cacarejo curto. Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha da cabeceira. Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos. Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos. Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio. Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu. Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista. _Já vai, seu Isidoro? Já _ disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio. Até domingo que vem, seu Isidoro _ disse o gerente. Não sei se virei _ respondeu Samuel, olhando pela porta a noite caía. Samuel saiu. Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois seguiu. Para casa. (De O Carnaval dos Animais. Porto Ed. Movimento, 1968)

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